sábado, fevereiro 28, 2009

Agreste

Agreste

O que significa sentir-se um lixo? Explico. É se sentir a pior pessoa do mundo, é ter consciência de que sua existência é inútil e de que sua inexistência irá até tornar o mundo melhor. É ver que você atingiu uma certa idade e que não conseguiu construir nada. É lamentar que amanhã será um novo dia e que a vida continua. É não ver sentido em nada do que você faz, e sobretudo no fato de estar nesse planeta. É ter vergonha de escrever o que estou escrevendo e mesmo assim publicar, esperando que alguém leia e fique com pena - como se isso fosse resolver alguma coisa. É se sentir no fundo do poço e ainda cavar um pouco mais, pra torná-lo mais fundo e, quem sabe, não conseguir sair de lá”.

(Uma desconhecida de si mesma)



Para quem se habituara a decifrar textos difíceis, aprender a ler aquele livro não estava sendo tarefa fácil: as letras deveriam desaparecer para que adviesse a palavra. E as palavras, perder-se ante seus olhos para que o que ali surgisse, explicasse o sentido daquele caminhar entre pedras pontiagudas.

Respirar, seguir em frente, exprimir e espremer sua história cotidiana. Não tinha escolha já que devia arar a roça, distribuir o déjeuner du matin. Mais um dia, a vida continuava - absurda. Il faut continuer encore. Il faut continuer un peu. Il n’y a pas de sens mais il faut continuer.

As palavras eram sempre insuficientes e jamais revelavam o essencial. Tudo, no final das contas, sempre ficava por dizer, no ar. No ar e nos campos. Nos campos e nas planícies verdes e férteis, prados fecundos, como aquela que, à son insu, levantava todas as manhãs para semear plantações - duras, árduas. Secas. Mas que vencia a aridez primeira do solo e atingia o sumo da terra: tudo o que ali chegasse, cresceria.

Ninguém nunca entenderia (nem ela mesma).

Há anos vinha cavando um poço. Concentrava-se tanto em seu intento, que não percebera que dali do fundo, a água jorrava. E, há muito, irrigava grandes extensões de terra. Terra árida, agreste, na qual nasceram flores que, um dia, talvez, tivesse coragem de sentir o perfume.

A parte deve permanecer discreta para que o todo possa emergir. Era duro sempre ser parte, transparente, opaca, oca, fragmento, caco. Pedaço. Deitar-se, levantar-se, olhar os outros, olhar a si sendo uma ínfima, minúscula parte.

Nada além de uma parte de si.

Mas a parte (principalmente a integrante) nunca se vê como todo. E, frequentemente, ignora tudo o que acontece nas margens.

Aquele livro estranho, bizarro, não tinha prefácio. Mas tinha autora. E parecia estar escrito numa língua que todos podiam ler. Todos, menos uma: aquela que, com giz e dor, gravava as palavras no quadro negro da vida.

O que escrevia diante de seus olhos, ela mesma não compreendia. Fazia um esforço grande para escrever sua trajetória, mas “os poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia” (Octavio Paz).


4 Comments:

At sábado, 28 fevereiro, 2009, Blogger amarelo said...

nossa, essa me pegou de surpresa mesmo. to emocionada. preciso digerir com calma. que texto lindo!

 
At domingo, 01 março, 2009, Blogger Unknown said...

wow!

 
At domingo, 01 março, 2009, Blogger Daniela Rodrigues Badra said...

Maravilhoso !!!

A parte dos prados principalmente !

Parabéns !!!

 
At sexta-feira, 29 julho, 2011, Anonymous Anônimo said...

As vezes gastamos tanto tempo procurando "vencer" ou em agradar as pessoas que não percebemos a força, a garra e originalidade de nossas ações. É uma pena pois podemos passar pela vida sem ter a alegria de contemplar tudo de bom que construimos.
Um grande abraço ao amigo Cicero.
by Aline Oliveira - Mato Grosso do sul.

 

Postar um comentário

<< Home