sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Adelante, compañeros...

Há alguns dias estava lendo uma notícia no jornal que me entristeceu bastante.Era um artigo do Alcino Leite Neto que relatava um incidente ocorrido numa famosa rede de móveis britânica ("A revolução da classe média"). A empresa (Ikea) havia anunciado uma grande oferta na venda dos movéis e, "resumo da ópera", a demanda foi tamanha que muita gente havia passado a noite em claro guardando um lugar na fila. Ao se abrirem as portas, pessoas pisoteadas, desmaios, escoriações, histeria. E tudo isso por causa de um criado-mudo, ou de uma poltrona.

Foto tirada de um jornal russo: "Use ou leve para casa!"

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, dona Maria Silva, 68 anos, moradora de Capão Redondo (zona sul de São Paulo), atual dona-de-casa e ex-empregada doméstica também dorme em pé na fila. Ela pretende assegurar a vaga do neto de 7 anos na primeira série de uma escola pública municipal. "Ele vai sê dotô, seu moço". São 03:20 da madrugada e a fila já tem mais de 8 Km. Temperatura: 8ºC. As mãos dela doem (em decorrência de um reumatismo que dona Maria até vem tratando há 5 meses, num hospital do SUS, sabe... Mas, já viu, né: sempre faltam remédios e um comprimido que deveria ser tomado diariamente, "a gente toma dia-sim, dia-não moço. O que não pode é parar de tratar, né?" E sorri.

Êxodo, Sebastião Salgado.

Seu sorriso me constrange de tal maneira que mal consigo encará-la. Não porque me sinta culpado pelos males do mundo. Mas porque reconheço nela um grau de humanidade que não vejo nas pessoas de meu cotidiano. A dignidade de sair de casa às 20:00 para ir sentar-se no portão da escola e esperar. Que vida loser, né? Ela talvez desconheça aquilo que está se passando em terras britânicas. Mas quer que seu neto seja um "dotô". Ela com certeza não quer que ele durma na fila para assegurar a vaga de seus netos na escola. Meus patrões (gerentes e diretores de multinacional) provavelmente diriam: "encontre um contato lá... quem sabe ele não te facilita as coisas...".

Até quando fingiremos que essas histórias não são uma consequência da outra? E caso não mais finjamos que não sabemos, até quando a única coisa que poderemos fazer é ficarmos constrangidos?

Enquanto isso, Mary Smith, inglesa, 34 anos, arquiteta, volta feliz para sua casa. Apesar de ficar na fila infernal da Ikea, ela conseguira comprar a mesa de centro para colocar em seu escritório por apenas 3 euros.

É Drummond, eta vida besta, meu Deus...