domingo, junho 04, 2006

Futuro
(do pretérito)

Ele poderia ser o silêncio de um longo luto, um interstício na caixa de Pandora, o intervalo entre uma obra e outra, o não-dito da vida, as pálpebras que se recolhem constrangidas, a soma do quadrado dos catetos (ou o quadrado da hipotenusa), uma nota entre parênteses, uma frase com reticências. Um morder de lábios de angústia, um advérbio de dúvida.

Poderia ser o branco puro da roupa alvejada, a sombra absoluta da Árvore da Vida, a luz eterna do Paraíso, a grama verdejante de um campo na Primavera, as folhas mortas do Outono, um artigo definido, uma preposição de lugar, uma crase diante de um substantivo masculino, uma prosopopéia.
Poderia ser as águas de Março, a fúria da Vênus ciumenta, um pronome possessivo (meu!), um erro...

Não, não seria um erro. Nem um adjetivo possessivo, já que nem a si mesmo ele pertence. Ele não é (d)aqui, ele é (de)lá. Filho do Longe e da Saudade, ele é o profano mais sagrado. É mão marcada pelo tempo. E pelo trabalho. Mão áspera, mas que, com imensa ternura, molda rústicos vasos de barro. Ele, quando crescer, quer ainda estar vivo. Como se ele pudesse morrer. Sim, ele é memória. E memória pode até se dispersar, se confundir, se turvar. Mas fica, sempre fica.

Et lui, malgré tout et malgré moi même, il reste ici. Il reste encore. Il reste. Toujours...

Cícero Alberto de Andrade Oliveira

Imagem: Novembre (Alphonse de Mucha, 1889)