Agreste
(Uma desconhecida de si mesma)
Para quem se habituara a decifrar textos difíceis, aprender a ler aquele livro não estava sendo tarefa fácil: as letras deveriam desaparecer para que adviesse a palavra. E as palavras, perder-se ante seus olhos para que o que ali surgisse, explicasse o sentido daquele caminhar entre pedras pontiagudas.
Respirar, seguir em frente, exprimir e espremer sua história cotidiana. Não tinha escolha já que devia arar a roça, distribuir o déjeuner du matin. Mais um dia, a vida continuava - absurda. Il faut continuer encore. Il faut continuer un peu. Il n’y a pas de sens mais il faut continuer.
As palavras eram sempre insuficientes e jamais revelavam o essencial. Tudo, no final das contas, sempre ficava por dizer, no ar. No ar e nos campos. Nos campos e nas planícies verdes e férteis, prados fecundos, como aquela que, à son insu, levantava todas as manhãs para semear plantações - duras, árduas. Secas. Mas que vencia a aridez primeira do solo e atingia o sumo da terra: tudo o que ali chegasse, cresceria.
Ninguém nunca entenderia (nem ela mesma).
Há anos vinha cavando um poço. Concentrava-se tanto em seu intento, que não percebera que dali do fundo, a água jorrava. E, há muito, irrigava grandes extensões de terra. Terra árida, agreste, na qual nasceram flores que, um dia, talvez, tivesse coragem de sentir o perfume.
A parte deve permanecer discreta para que o todo possa emergir. Era duro sempre ser parte, transparente, opaca, oca, fragmento, caco. Pedaço. Deitar-se, levantar-se, olhar os outros, olhar a si sendo uma ínfima, minúscula parte.
Nada além de uma parte de si.
Mas a parte (principalmente a integrante) nunca se vê como todo. E, frequentemente, ignora tudo o que acontece nas margens.
Aquele livro estranho, bizarro, não tinha prefácio. Mas tinha autora. E parecia estar escrito numa língua que todos podiam ler. Todos, menos uma: aquela que, com giz e dor, gravava as palavras no quadro negro da vida.
O que escrevia diante de seus olhos, ela mesma não compreendia. Fazia um esforço grande para escrever sua trajetória, mas “os poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia” (Octavio Paz).